Comovente carta do Papa Francisco aos sacerdotes

Comovente carta do Papa Francisco aos sacerdotes

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“Não mel, mas sal da terra”. Sobre a carta do Papa aos presbíteros de coração a coração

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A sua misericórdia é eterna! O grito de exultação do Salmo 135 é o leitmotiv que acompanha o texto que o Papa quis enviar a todos os sacerdotes por ocasião da festividade do seu padroeiro, o Cura d’Ars, no 160° aniversário da sua morte. Nesta longa carta, assinada e enviada da catedral de São João de Latrão, o bispo de Roma dirige-se a todos os presbíteros do mundo mas, segundo o seu estilo, coloca-se diante de cada um deles, falando a um “tu” de coração aberto, cor ad cor loquitur, em conformidade com o lema do [santo, canonizado recentemente], cardeal Newman.

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Francisco fala de coração a coração e quer que a todos os sacerdotes católicos espalhados pelo mundo chegue o seu abraço, a sua estima, a sua proximidade e o seu encorajamento. A missiva é dirigida «a vós que, como o Cura d’Ars, labutais na “trincheira”, aguentais o peso do dia e do calor (cf. Mt 20, 12) e, sujeitos a uma infinidade de situações, as enfrentais diariamente e sem vos dar ares de importância para que o povo de Deus seja cuidado e acompanhado»

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É preciso ter a coragem de “se expor” e esta coragem deve ser “reabastecida”, revigorada: eis o sentido que sobressai imediatamente da leitura deste importante texto do atual sucessor de Pedro. Encorajamento e gratidão: «Como irmão mais velho e pai, também eu quero estar perto, em primeiro lugar para vos agradecer em nome do santo povo fiel de Deus tudo o que ele recebe de vós». Irmão mais velho e pai: entre os numerosos documentos do pontificado de Bergoglio, este é um daqueles dos quais mais transpira a paternidade do Santo Padre. Portanto, um texto intenso e rico de nuances, a ponto de ser difícil comentá-lo, em pouco tempo, de modo exaustivo (aliás, não se trata de um texto para ser comentado, mas serve de acompanhamento para todos os católicos, não somente para os presbíteros, na labuta da vida de todos os dias).

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Numa primeira leitura, impressionam três aspetos, expressos por três palavras: sofrimento, tentação, povo.

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A dor é posta no centro da reflexão de Francisco; vem à mente Dostoievski, escritor particularmente amado pelo Papa, que coloca no centro das suas obras a dor com o seu escândalo, mas também com a santidade. A dor é uma parte intrínseca do ser sacerdote: «A missão a que fomos chamados não comporta ser imunes ao sofrimento, à dor e nem sequer à incompreensão», e o Papa tem palavras de grande conforto para o particular momento histórico que a Igreja está a atravessar, mas é precisamente o ser sacerdote que, sempre, expõe a uma imersão nas feridas e, portanto, no sofrimento da humanidade. Aliás, afirma o Papa, a relação com a dor revela-se um precioso “teste”: para «saber como está o nosso coração de pastor é preciso perguntar-nos como enfrentamos a dor».

Papa incensando sacerdotes. Foto: Internet
Papa incensando sacerdotes. Foto: Internet

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E aqui aparece o segundo aspeto, a tentação, que consiste antes de tudo em querer afastar-se do sofrimento e depois do sofredor. Trata-se de uma tentação que se colora de inteletualismo, quando ao contrário a vocação e missão sacerdotal devem ser enfrentadas «não como teoria, como conhecimento intelectual ou moral do que deveria ser, mas como homens que, no meio da tribulação, foram transformados e transfigurados pelo Senhor e, como Job, chegam a exclamar: «Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti, mas agora veem-te os meus próprios olhos» (42, 5). Sem esta experiência fundadora, todos os nossos esforços nos levarão pelo caminho da frustração e do desencanto».

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E aqui aparece outra nuance da mesma tentação, que é a preguiça. O Papa recorre novamente à literatura, evocando de modo explícito o Diário de um pároco de aldeia, de Bernanos, e à grande tradição espiritual, citando o cardeal Tomáš Špidlík, e define eficazmente a preguiça como tristeza adocicada, que «semeia desânimo, orfandade e leva ao desespero», aquela tristeza que «paralisa o ardor de continuar com o trabalho e com a oração, torna-nos antipáticos aqueles que vivem ao nosso lado […] leva à habituação e, pouco a pouco, faz-nos ver como natural o mal e a injustiça, sussurrando tenuemente: “sempre se fez assim”».

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No mesmo romance, o grande escritor francês, precisamente contra aquela tristeza adocicada, faz dizer a um sacerdote:

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«O bom Deus não escreveu que nós somos o mel da terra, meu jovem, mas o sal».

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É aqui que se descobre o bom “serviço” que a literatura pode prestar: trazer aquele entusiasmo de que precisa o homem entorpecido pela “prosaicidade” da vida. O Papa resume-o de forma eficaz, precisamente quando explica o risco da preguiça, com palavras simples: «Desafiemos a habituação, abramos bem os olhos e os ouvidos». Mas os bons livros, poéticos ou espirituais, que certamente podem abrir os olhos e os ouvidos, sozinhos não são suficientes; pelo contrário, podem dar azo a outra tentação, aquela à qual o Papa chama “tendência prometeica”; portanto, é necessário mais, a oração:

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Na oração experimentamos aquela nossa bendita precariedade, que nos lembra que somos discípulos carecidos do auxílio do Senhor e nos liberta da tendência prometeica “de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas”.

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Aqui sobressai o terceiro aspeto: o povo. Pois a oração nunca é apenas um acontecimento individual. Especialmente para um pastor, a sua oração funde-se com aquela do e pelo povo. Também aqui devemos recomeçar a partir da dor, porque «o sofrimento de tantas vítimas, o sofrimento do Povo de Deus, e também nosso, não pode ser em vão»; imerso na experiência fundadora do sofrimento, o pastor descobrirá que na sua missão nunca está sozinho, mas tem sempre ao seu lado dois companheiros e aliados: o povo e Jesus. «Numa oração como esta, sabemos que nunca estamos sozinhos», afirma o Papa: «A oração do pastor é uma oração habitada tanto pelo Espírito “que clama: Abbá, Pai!” (Gl 4, 6), como pelo povo que lhe foi confiado. A nossa missão e identidade compreendem-se a partir desta dupla ligação. A oração do pastor nutrese e encarna-se no coração do Povo de Deus.

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 Francisco saúda sacerdotes que dedicam a sua vida aos outros. Foto: Agência Ecclesia
Francisco saúda sacerdotes que dedicam a sua vida aos outros. Foto: Agência Ecclesia

Traz as marcas das feridas e das alegrias do seu povo». Esta aliança permite que o coração do pastor não desanime: «Para manter o coração animado, é necessário não negligenciar estas duas ligações constitutivas da nossa identidade: com Jesus […] Quanto à outra ligação constitutiva, robustecei e nutri o vínculo com o vosso povo. Não vos isoleis do vosso povo, nem dos presbitérios ou das comunidades. E, menos ainda, não vos encerreis em grupos fechados e elitistas. Isto, no fim, asfixia e envenena o espírito. Um ministro ardoroso é um ministro sempre em saída». Sofrimento, tentação, povo. Mas o manto da misericórdia cobre tudo. O Papa não menciona o termo original em hebraico, rachamín, mas exprime claramente o conceito, quando agradece aos sacerdotes «as vezes em que, deixando-vos entranhadamente comover, acolhestes os caídos, curastes as feridas, dando calor aos seus corações, mostrando ternura e compaixão, como o samaritano da parábola (cf. Lc 10, 25-37).

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Nada é mais urgente do que isto: proximidade, vizinhança, abeirar-se da carne do irmão que sofre.

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Quando os sacerdotes se deixaram comover intimamente, foram fiéis, e o Papa deseja sublinhá-lo: «Obrigado pela vossa fidelidade aos compromissos assumidos. Numa sociedade, numa cultura que transformou o “gasoso” em valor, é verdadeiramente significativa a existência de pessoas que apostem e procurem assumir compromissos que exigem toda a vida».

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Sacerdotes de joelho diante do papa francisco
Sacerdotes pedem a bênção do Papa Francisco. Foto: Internet

Eis o sal, e não o mel, da terra, o sinal de contradição, eis o antídoto contra a tristeza adocicada, a solidez da fé diligente em relação ao “estado gasoso” do mundo. Tudo bem, contanto que não escorreguemos no risco oposto da tendência prometeica (as duas heresias, gnose e pelagianismo, sempre atuais); disto nos salva a consciência de que a fidelidade não é nossa, mas de Deus, a sua misericórdia é eterna. Não é um erro de impressão a repetição, por dezenas de vezes na carta, da exclamação do Salmo 135: «A sua misericórdia é eterna!»; nós podemos ser misericordiosos de vez em quando, mas Deus é a misericórdia e nós só o podemos ser na medida em que o deixarmos agir dentro de nós. E se não fosse suficiente, neste ponto o Papa é mais claro do que nunca:

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«Substancialmente, estamos a dizer que continuamos a acreditar em Deus que nunca quebrou a sua aliança, mesmo quando nós a quebramos vezes sem conta. Isto convida-nos a celebrar a fidelidade de Deus que, apesar dos nossos limites e pecados, não deixa de confiar, crer e apostar em nós, e convida-nos a fazer o mesmo».

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Como já tinha escrito na Gaudete et exsultate:

«A falta de um reconhecimento sincero, pesaroso e orante dos nossos limites é que impede a graça de atuar».

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No final da leitura deste texto, que o sucessor de Pedro enviou a todos os seus irmãos sacerdotes, vem à mente outra comovedora página literária sobre o mysterium Ecclesiae, escrita pelo romancista inglês G. K. Chesterton:

«Quando, num momento simbólico, lançava os alicerces da sua grande sociedade, Cristo não escolheu como pedra angular o genial Paulo, nem o místico João, mas um trapaceiro, um insolente, um covarde: em síntese, um homem. E sobre esta pedra Ele edificou a sua Igreja, e as portas do inferno não prevaleceram sobre ela. Devido a esta fraqueza intrínseca e constante, desabaram todos os impérios e todos os reinos, que foram fundados por homens fortes sobre homens fortes. Mas essa realidade singular, a histórica Igreja cristã, foi fundada sobre um homem fraco, e por isso é indestrutível. Pois nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais frágil».

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Publicado originalmente no L’osservatore Romano por Andrea Monda

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