Por que um direito na Igreja?

Por que um direito na Igreja?

A Igreja Católica, através de seu ensino teológico e das atividades sociais e de caridade que desenvolve, quer promover a justiça. O papa Paulo VI pôde afirmar na plataforma da ONU em 1965 que a Igreja era “especialista em humanidade”. Tal afirmação nutrida pelos 2.000 anos de história da fé cristã não ressoaria se a promoção da justiça nas Nações não fosse buscada também pela Igreja, inclusive em sua vida institucional. Essa é uma das razões essenciais para a presença da lei na Igreja: garantir a justiça dentro dela, para que o que a fé anunciada a todos também seja vivido na comunidade de crentes. Nenhuma proclamação de fé é credível sem busca genuína por justiça fora e dentro da Igreja. Tal afirmação nem sempre é evidente e, no entanto, deve ser um imperativo da reflexão eclesial. Pois protege de qualquer espiritualização arriscada.

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Esta presença do direito na comunidade crente não é apenas coerente com a mensagem evangélica, que deve ser vivida e anunciada na equidade fora e na sociedade eclesial. Também é coerente com a própria natureza desta igreja dos Santos. Freqüentemente foi ensinado que o direito está na Igreja somente porque a Igreja também era uma sociedade humana, uma República Cristã, referindo a justificativa de sua presença na filosofia política e, como tal, a Igreja por natureza espiritual era normalmente estranha à lei. Em oposição a essa visão, deve-se afirmar que a presença do direito também é uma necessidade eclesiológica, pois longe de ser confundida apenas com a norma de uma sociedade humana – o que a Igreja também é – o direito, arte o justo atende à natureza espiritual da instituição como uma saída necessária da revelação.

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Cúpula do Vaticano

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Com efeito, quando Cristo envia os discípulos numa missão, ele estabelece um direito: o de ouvir a proclamação do Evangelho; e um dever: proclamar o Evangelho. Este anúncio carrega nele ainda um outro direito: o direito de receber o batismo; e outro dever: conferir o batismo. Em outras palavras, a palavra, os sacramentos e a ação do Espírito surgem de direitos e deveres ou de deveres e direitos e, consequentemente, uma arte da justiça, que a autoridade eclesial entendeu como uma sucessão apostólica, regula de modo que a cada vez que a missão profética da Igreja é vivida e anunciada na justiça aos homens e às mulheres, fora e dentro da Igreja, para que o depósito de fé possa ser devidamente transmitido.

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A arte da justiça é, portanto, um elemento essencial e um método indispensável ao serviço da Igreja, da comunidade de fé em busca de Deus e em busca da santidade. Com o direito canônico, é possível regular com precisão a autoridade sagrada dos pastores; com o direito canônico, é possível prevenir ou curar as comunidades de possíveis excessos sectários; com o direito canônico, é possível acompanhar a fé dos fiéis, abrindo novos caminhos para eles caminharem em direção a Deus; com o direito canônico, é possível oferecer aos outros direitos, um espaço de reflexão e pesquisa, longe dos fechamentos de um estreito positivismo jurídico. De fato, a Igreja se une à sua experiência jurídica com a profundidade da humanidade se movendo em direção a Deus e, assim, ela se junta à alegria do Evangelho. 

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Símbolo da Justiça

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O direito aqui não é mais a aplicação de um padrão frio e uma justiça cega, mas a busca do direito como expressão de equidade, não apenas de um direito decorrente de princípios intangíveis, mas de um direito que procura um bem para buscar de Deus e ir a Deus. Aqui o verso de Isaías pode ser programático para qualquer canonista, se vivido de maneira real e não idealista:

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“Ele não quebrará a cana que já está rachada, nem apagará o pavio que está a se apagar. Promoverá fielmente o direito; não desanimará, nem se abaterá, até implantar o direito na terra e a lei que as ilham esperam”

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Vaticano – Roma

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Esta busca pela justiça sempre em movimento, faz do direito canônico não um direito dogmático, mas um direito plástico, isto explica porque, ao longo dos séculos, houve evoluções da norma para responder sempre melhor com fidelidade à transmissão da fé em uma determinada época, desde o medieval Corpus Iuris Canonici ao Código de Direito Canônico de 1983, e ao Código de Cânones das Igrejas Orientais de 1990 até o Código de Direito Canônico de 1917. Assim, Fedele, canonista italiano, poderia escrever em 1962, no  espírito do direito canônico:

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A quem considerar sobre que princípios imutáveis e eternos se ergue o direito canônico e em que fios inexaurível ele impele as suas raízes profundas, o sistema jurídico da Igreja aparecerá, entre todos os sistemas, como o mais estático, imóvel e inflexível, o mais resistente às vicissitudes políticas, econômicas e sociais de que é feita a história humana, o menos sensível às particularidades […] Ao contrário, a quem considerar a imponente diversidade de pessoas que abraça, e com que rica diversidade de épocas históricas se estende a sua vida secular, o direito canônico aparecerá, entre todos os sistemas jurídicos, como o mais dinâmico, mutável e elástico, mais aderente aos casos particulares da vida individual e social.

Padre Ludovic DANTO,
Reitor da faculdade de direito canônico do Instituto Católico de Paris

Publicado originalmente em francês no site https://www.droitcanonique.fr

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